Edward Bulwer Lytton(O Guardião do Umbral - Zanoni)
“Glyndon colocou a sua lâmpada ao lado do Livro, que ainda estava ali aberto; virou umas folhas e outras, porém sem poder decifrar o seu significado, até que chegou ao trecho seguinte:
‘Quando pois o discípulo está desta maneira iniciado e preparado, deve abrir a janela, acender as lâmpadas e umedecer as suas fontes com o Elixir. Mas que tenha cuidado de não se atrever a tomar muita coisa do volátil e fogoso espírito. Prová-lo, antes que, por meio de repetidas inalações, o corpo se haja acostumado gradualmente ao extático líquido, é buscar, não a vida, mas sim a morte.’
Glyndon não pôde penetrar mais adiante nas instruções; pois aqui as cifras novamente estavam mudadas. O jovem pôs-se a olhar fixa e seriamente em redor de si, dentro do quarto. Os raios da Lua entraram quietamente através das cortinas, quando sua mão abriu a janela, e assim que a sua misteriosa luz se fixou nas paredes e no solo da habitação, parecia como se tivesse entrado nela um poderoso e melancólico espírito. O jovem preparou as 9 lâmpadas místicas em torno do centro do quarto, e acendeu-as, uma por uma. De cada uma delas brotou uma chama de azul prateado, espalhando no aposento um resplendor tranqüilo, porém ao mesmo tempo deslumbrante. Essa luz foi-se tornando pouco a pouco mais suave e pálida, enquanto uma espécie de fina nuvem parda, semelhante a uma névoa, se esparzia gradualmente pelo quarto; e subitamente um frio agudo e penetrante invadiu o coração do inglês, e estendeu-se por todo o seu corpo, como o frio da morte.
O jovem, conhecendo instintivamente o perigo que corria, quis andar, porém achou grande dificuldade nisso, porque suas pernas se haviam tornado rígidas, como se fossem de pedra; contudo, pôde chegar à prateleira onde estavam os vasos de cristal; apressadamente inalou um pouco do maravilhoso espírito, e lavou as suas fontes com o cintilante líquido. Então, a mesma sensação de vigor, juventude, alegria e leveza aérea, que havia sentido pela manhã, substituiu instantaneamente o entorpecimento mortal que um momento antes lhe invadira o organismo, pondo em perigo a sua vida. Glyndon cruzou os braços e, impávido, esperou o que sucederia.
O vapor havia agora assumido quase a identidade e a aparente consistência duma nuvem de neve, por entre a qual as lâmpadas luziam como estrelas. O inglês via distintamente algumas sombras que, assemelhando-se, em seu exterior, às formas humanas, moviam-se devagar e com regulares evoluções através da nuvem. Estas sombras eram corpos transparentes, evidentemente sem sangue, e contraiam e dilatavam-se como as dobras duma serpente. Enquanto se moviam vagarosamente, o jovem ouvia um som débil e baixo, como se fosse o espectro duma voz - que cada uma daquelas formas apanhava de outras e a outras transmitia, como num eco; um som baixo, porém musical, e que se assemelhava ao canto duma inexprimível e tranqüila alegria. Nenhuma dessas aparições reparava nele. O veemente desejo que ele sentia, de aproximar-se delas, de ser um de seu número, de executar um daqueles movimentos de aérea felicidade - pois assim lhe parecia que havia de ser a sensação que os acompanhava - fez com que estendesse os seus braços, esforçando-se por chamar com uma exclamação, a atenção desses seres; porém somente um murmúrio inarticulado saiu dos seus lábios; e o movimento e a música seguiam, como se não houvesse ali nenhum ser mortal.
Aqueles seres etéreos, semelhantes a sombras, deslizavam tranqüilamente pelo quarto, girando e voando, até que, na mesma majestosa ordem, um atrás do outro, saiam pela janela e se perdiam na luz da lua; depois, enquanto os olhos de Glyndon os seguiam, a janela se obscureceu com algum objeto, ao princípio indistinguível, porém que, por um mistério, foi suficiente para mudar, por si só, em inefável horror o prazer que o jovem experimentara até então. Esse objeto foi tomando forma. Aos olhos do inglês parecia ser uma cabeça humana, coberta com um véu preto, através do qual luziam, com brilho demoníaco, dois olhos que gelavam o sangue em suas veias. Nada mais se distinguia no rosto da aparição, senão aqueles olhos insuportáveis; porém o terror que o jovem sentia, e que ao princípio parecia irresistível, aumentou mil vezes ainda, quando, depois duma pausa, o fantasma entrou, devagar, no interior do quarto. A nuvem se retirava da aparição, à medida que esta se aproximava; as claras lâmpadas empalideciam e tremeluziam inquietamente, como tocadas pelo sopro do fantasma. O corpo deste ocultava-se debaixo dum véu, como o rosto; mas por sua forma adivinhava-se que era uma mulher; não se movia como o fazem as aparições que imitam os vivos, mas parecia antes arrastar-se como um enorme réptil; e, parando um pouco, curvou-se por fim ao lado da mesa, sobre a qual estava o místico volume, e fixou novamente os seus olhos, através do tênue véu, sobre o temerário invocador. O pincel mais fantástico e mais grotesco dos monges-pintores medievais, ao retratar o demônio infernal, não teria sido capaz de dar-lhe o aspecto de malignidade tão horrível, como se via nesses olhos aterrorizantes. O corpo do fantasma era tão preto, impenetrável e indistinguível, que lembrava uma monstruosa larva. Porém, aquele olhar ardente, tão intenso, tão lívido, e não obstante tão vivo, tinha em si algo que era quase humano em sua máxima expressão de ódio e escárnio... Por fim, este falou, com uma voz que antes falava à alma do que ao ouvido:
- Entraste na região imensurável. Eu sou o Espectro do Umbral. Que queres de mim? Não respondes? Temes-me? Não sou eu a tua amada? Acaso, não tens sacrificado por mim os prazeres da tua raça? Queres ser sábio? Eu possuo a sabedoria dos séculos inumeráveis. Vem, beija-me, oh meu querido, querido mortal! ...
E enquanto o horroroso fantasma dizia estas palavras, arrastava-se mais e mais para perto de Glyndon, até que veio a pôr-se a seu lado, e o jovem sentiu em sua face o alento do espectro. Soltando um agudo grito, caiu desmaiado ao chão, e nada mais se soube o que ali se passou...”
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